segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Rainy Mercedes





Chuvia a duas horas. Quase três. O barulho da janela era o único som dentro do quarto assim como os trovões eram a única luz. Sentada no chão ao pé da cama ela tira fotos da janela. Falta de eletricidade a entediava. A cada flash de fora, um flash lá dentro. Não sabia o que sua ação procurava, mas iluminar a escuridão do seu quarto por alguns segundos era parecia uma resposta a altura. A cada pressão do botão, uma nova imagem aparecia no vidro da janela. A cada vez que fazia força no dedo, mais força fazia para que saísse dela apenas a luz. Estava cansada de chover. Mas sempre que fotografava, lembrava. Eram pensamentos invasivos das coisas bonitas que ficaram. Das coisas idiotas que podia ter remendado. De saudades e carências que nem imaginava que teria. Quatro anos não se lavam depois de apenas uma noite de chuva. Começou a sentir a maquina pesar sem perceber. Começou a pensar nele sem perceber. Começou tudo de novo sem perceber.

Arrastou-se a cama e abraçou as pernas procurando calor. Fechou os olhos procurando silencio. Reviveu o ultimo dia procurando explicação. E na noite escura e úmida, desejou. Primeiro para si, depois em voz alta. E percebeu que palavras, estas malditas palavras, condensam uma vez ditas. E são levadas pelo vento não importava para onde desde que fosse pra fora de si. Então gritou suas histórias para cada gota que caia. Gritou todas em plenos pulmões. Todas que lembrava e as que não lembrava. Gritou seu amor, sua loucura, seu êxtase, seu remorso, sua vingança, sua solidão. Queimou fotos, arquivos, cartas, sorrisos, pingentes, tardes ensolaradas, mensagens no espelho, palavras falsas de amor eterno, noites de sexo confusos, os cheiro e gostos que nunca mais teria, o olhar que me deu quando disse adeus. Quebrou copos e estantes desejando que fosse a ele a cair e se espatifar. Amaldiçoou cada dia que esteve ao seu lado para logo após agradecer o tempo que teve para amá-lo. Dormiu cansada com raiva de si e a certeza de que não acordaria.

Mas acordou. Acordou com a luz do dia. Acordou e se pos de pé, quando achou que não poderia. E no meio dos pedaços de destroços dentro dela, ela acordou. E já não sabia mais porque sentia dor.


[ Desafio Literário. um escritor desafia outro a escrever uma visão sobre seu trabalho. Crônica Masculina desafia: Hey, Mercedes ]

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Retrato Falado



"Reality doesn't matter,
What matters is the illusion"
Whatever Happened to Dulce Veiga?
by Caio Fernando Abreu



Rubem era um artista da fome clássico. Daquele que não come pão pra comprar tinta. Seu trabalho era algo perto do medíocre, mas sua paixão era algo para se impressionar. Ele tentou me salvar. Ele viu meu trabalho de pintura numa modesta exibição que montei e ninguém soube da existência. Rubem achou que ali tinha alguma coisa, tinha potencial. Seus sentimentos eram nobres, mas só dei atenção ao que falava por sua bundinha, o que não era muito nobre da minha parte. Mas não passou de olhadas , já que ele era comprometido – o que não anulava sua beleza. Saímos da galeria para um café para conversarmos.

Rubem estava na segunda faculdade, fazia cursos extras através das bolsas que conseguia e a cada novo estudo se apaixonava por algo novo. Já havia tentado tinta óleo, aquarela, marcenaria, litografia, trigonometria, dança contemporânea e mais cinco ou seis coisas que misturavam tudo e não acabam em nada a não ser experimentalismo. Há pouco mais de três anos estava casado com um cara e morando junto com sua mãe, viúva. Ele era a razão de continuar tentando mais do que só pagar as contas do mês. Nessa hora, seus olhos brilhavam babacamente ao falar do marido, o que me deu uma certa inveja. Rubem fez questão de contar que quando o viu pela primeira vez o achou o homem mais lindo que já vira e, ao contrario do senso comum, decidiu que ele precisava saber disso. A teoria de Rubem era de que se xingamos um desconhecido na rua a plenos pulmões por pisar no nosso pé, deveríamos também ter coragem de dizer no mesmo tom que achamos bonito um estranho na rua. Algo como um equilíbrio cármico, espalhar o bem ou algo assim. Então ele andou ate a fila do pão, meio tímido, meio canalha, tocou o ombro do rapaz e disse ‘você é lindo’, assim a queima roupa. Um minuto de silêncio constrangedor e o cara achou que ele era maluco. Pagou sua conta, sorriu amarelo e saiu andando. Meses depois se esbarraram em uma festa de um conhecido em comum e riram sobre o episodio. A festa durou 6 horas, mas a conversa deles durou por três anos, disse fechando com mais um dos sorrisos babaco-apaixonados. A moral da história é que amor podia estar em qualquer lugar, até na fila de pão. Que seja, pensei. Pagamos a conta e trocamos contato para montar uma exposição conjunta.

Cinco meses depois Rubem e o rapaz se separaram. ‘Tinhamos interesses diferentes’, ele disse. Eu também não voltei a pintar.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Apenas números

smoke
“There is a man playing a violin
And the strings are the nerves in his own arm”
— James O’Barr, The Crow






Já era mais do que noite. As ruas escuras e vazias se acendem com a iluminação das festas enquanto todos dormem. Duas e trinta e cinco. As cortinas da varanda se mexem lentamente atrás de mim enquanto termino o cigarro e a garrafa de gin. São tudo o que preciso para esquecer o quanto essa época de fim de ano me deprime. São esses momentos sozinhos comigo que consigo colocar em ordem o começo e o fim do que faço. E o que eu faço? O que eu quero fazer? Faz tempo em que não tenho certeza do que eu quero da vida. E sempre tem alguém que pergunta. Nessas horas me lembro do meu chefe, gordo na superioridade da sua cadeira reclinável achando que todas as minhas reações são passiveis de análise e explicação. Fico sempre esperando ele virar pra mim e dizer que estou demitido. Por uma vez apenas queria ter a coragem de responder pra ele e pra quem mais perguntasse que eu não sei o que eu quero da vida ou se eu quero pensar em algo alem do meu próximo copo que vai me fazer esquecer que tenho de escolher alguma coisa pra mim. O mais escroto disso tudo é saber que por mais que odeie como essa coisa de chefe-funcionário funciona com bajulações e falsas compensações, eu ainda quero fazer parte dela. Digo, ainda quero ter dinheiro pra não me preocupar em ter dinheiro. Não ficar em hotéis vagabundos como este seria um começo. Melhor, já que é pra almejar, eu queria fazer duas viagens inúteis ao ano para ter fotos pra esfregar na cara de gente que só se interessa pelo que acham que sabem de mim. Ou pra tirar onda de bacana e bancar algo incrivelmente estúpido só para aparecer em uma revista e me chamarem de visionário, como aqueles riquinhos metidos a artista. Coisa de gente branca, diria Sofia. Um carro quebra o silencio da madrugada coincidentemente na hora em que meu copo é só gelo com água. É um sinal, devia estar tentando dormir.

Um último cigarro sentado na cama. A luz da rua fazia sombras sobre os lençóis que se movimentavam com a respiração dele. Não sei por quanto tempo o fiquei olhando. Armando ou Antonio. Não tenho certeza do nome. O triste é que nem precisei de muito para que fosse ate ali comigo. Se despir hoje em dia é fácil. Ser interessante por mais de uma foda é que está difícil. Era o caso dele. Uma típica boa foda e péssima conversa. E aquele ritual já era conhecido. De manhã ele pediria meu telefone. Eu diria que não tinha, mas que ele me desse o dele. E pede que ligue para marcarmos mais um encontro como este e eu nunca ia ligar. Eu nunca ligo. A previsibilidade era a parte apática de tudo. Mais algumas horas e seria um novo ano. Um ano novo, uma chance de recomeçar como alguém diferente. Gostava de pensar q na segunda feira depois do porre do ano novo eliminaria meus vícios, seria presenteado pela sorte e a partir daí tudo estaria esquematizado na minha vida para dar certo. Só que eu tinha 25 e pro meu plano dar certo deveria ter começado aos 18. Foda-se. São apenas números.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Retroação




Cinco minutos para terminar. Cinco. O ponteiro parece perceber minha ansiedade e anda em câmera lenta em direção ascendente. Pés batendo. Caneta mordida. Me ponho em direção a saída apenas esperando o sinal de libertação, o fim da angústia do dia inteiro. Antes da quinta volta, ganho a rua como quem procura o ar que falta. Era o fim de mais um dia. Mais um fim para minha vida.

Então pego minha bicicleta e corro. Corro o mais rápido que minhas pernas permitem. Corro do fim. Corro da responsabilidade de acordar cedo. Corro do poder que minhas palavras tem sobre mim mesmo. Corro do que me arrependi e do que ainda nem fiz. Corro da chuva. Corro. Corro. Porque corro.

E depois de não sei quanto tempo me vejo parado na frente as sua casa. Um ato falho irônico. Mesmo assim, olho pela janela na esperança de que você visse mesmo que de relance todo o desespero que deixei no caminho para chegar aqui e me desse aquele abraço. Aquele que sempre me deu e que apaga todos os problemas de mim. E eu espero. Espero o tempo passar ou voltar. Espero. Espero os segundos se estenderem ao infinito. Espero e o movimento das coisas sutilmente pára e lentamente começa a retroagir. Um compasso invertido toma conta da cidade, do país e do mundo fazendo com que nada mais seja do jeito que já foi um dia. O planeta sai do eixo com a sua ausência. Tudo anda, mas nada mais será o mesmo.

Um ano para voltar. Um ano e tudo começará novamente.